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A fábrica de funcionários. Outra conversa com Frederico Neves Parreira
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“Se a estupidez não se assemelhasse, a ponto de se confundir, com o progresso, o talento, a esperança ou o aperfeiçoamento, ninguém desejaria ser estúpido”, isto foi notado por Musil, mas adiantaríamos que a característica que distingue a estupidez produzida pelo nosso tempo é esta: a sua adequação às próprias noções de sucesso. Afinal, este é um tempo que se destinou ao desastre, e, assim sendo, é natural que as hierarquias nos ponham diante de autênticas conspirações de estúpidos. Só se afirmam esses seres incapazes de uma consciência clara do ridículo das suas existências. Triunfo é uma forma de fanatismo de si mesmo. Essa é a única promessa que o homem contemporâneo é capaz de se fazer, a de que, se o mundo o contrariar, está legitimado para dar cabo dele. Nas promessas que o homem se faz, o mundo foi-se tornando cada vez mais um empecilho, algo inconveniente, e daí que os estúpidos se tenham encarregado de triturá-lo aos poucos, obtendo um lucro fabuloso nessa operação. Olhamos ao nosso redor e toda a existência humana parece estar prometida a este projecto, e todos se mostram imensamente confiantes com o progresso da operação. Na verdade, esta completa falta de noção do ridículo é aquilo que garante que qualquer esforço de crítica seja visto como uma forma de pretensiosismo, uma atitude própria de quem está apostado em perturbar o curso da evolução histórica. No fundo, os estúpidos somos nós. E esta inversão extraordinária garante, pelo caminho, que já ninguém possa ser chamado à razão. O efeito de intimidação é de tal ordem que são cada vez mais escassos os pensamentos que respondem a esta conspiração através da recusa das suas orientações, até porque a linguagem mesma tornou-se imensamente pantanosa, os termos e os conceitos viram-se apropriados pela estupidez, pelos seus valores contagiosos, por essa inversão do sentido, de tal modo que quem questionar seja o que for obriga-se a um exame de tal modo implicante que a maioria se perde, distraindo-se com outra coisa. Qualquer letrado, ao introduzir a suspeita e afastar-se do idiolecto imbecilizante e inteiramente recamado na forma de frases feitas, transforma-se de imediato num ser incómodo, e é ele que atrai sobre si a rejeição dos demais. Hoje, cada escritor que viole esse circuito de noções desastradas vê-se transformado no artista da fome, recusando esse venenoso sustento, apresentando-se na figura do protagonista de um conto de Kafka que exibe como espectáculo o seu jejum prolongado, e que tem de fazer um esforço absurdo para que o público não escolha outro entretenimento. É o próprio destino horroroso que temos diante de nós aquilo que estranhamente nos hipnotiza e atrai. Não conseguimos recusá-lo, pois isso significaria travar uma luta apenas para adiar algo que parece estar inscrito nos sonhos da espécie. Há um desejo cada vez mais desinibido pelo desastre. Como nos diz Pascal Quignard, “matar-se é a paixão específica da espécie homo, fazendo jorrar o seu sangue negro, o seu vírus, a sua virtus, opondo-se às outras feras, nas quais a predação é simplesmente suscitada pela presa que as saciará, e também imediatamente saciada na medida em que a sua fome fora rigorosamente suscitada”. Arrancámo-nos à natureza, e esta dissolveu-se dentro de nós. Agora estamos cativos de uma irresolução permanente, de uma fome insaciável. “As centenas de milhões de ecrãs que cobrem o planeta transformaram-se no novo órgão fascinante, substituindo sacrifícios e ritos, multidões peregrinas, massas espezinhantes. É a sedentarização final. É o progrom tornado imóvel. Se o espectáculo não apazigua inteiramente a fruição horrorizada que este suscita, pelo menos crava no lugar o espectador que examina o sangue a escorrer. Faz daqueles que sidera presas com moradas, documentos de identificação, cartões bancários, vítimas numeradas, corpos sentados e petrificados susceptíveis a todas as extorsões e a todas as pilhagens. (…) O ódio, uma vez tornado imóvel a esse ponto, transforma-se em medo. O medo, esse companheiro único do desejo, confinado na sedentariedade e na propriedade fundiária, é reformulado como angústia. Essa angústia procura protecção junto do poder que ela mesma delegou ao pavor para conter o seu assombro, no qual consente como se não lhe pertencesse sob a forma de obediência, de liberdade mortificada, de imobilidade psíquica, de indolência social. Aquilo a que as democracias chamam política, desde o início deste século, olvidando o horror do século que precedeu este novo século, está a cometer o erro de criminalizar a contestação que as fundamenta e que deveria agitá-las até ao tumulto para as manter vivas.”
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“Se a estupidez não se assemelhasse, a ponto de se confundir, com o progresso, o talento, a esperança ou o aperfeiçoamento, ninguém desejaria ser estúpido”, isto foi notado por Musil, mas adiantaríamos que a característica que distingue a estupidez produzida pelo nosso tempo é esta: a sua adequação às próprias noções de sucesso. Afinal, este é um tempo que se destinou ao desastre, e, assim sendo, é natural que as hierarquias nos ponham diante de autênticas conspirações de estúpidos. Só se afirmam esses seres incapazes de uma consciência clara do ridículo das suas existências. Triunfo é uma forma de fanatismo de si mesmo. Essa é a única promessa que o homem contemporâneo é capaz de se fazer, a de que, se o mundo o contrariar, está legitimado para dar cabo dele. Nas promessas que o homem se faz, o mundo foi-se tornando cada vez mais um empecilho, algo inconveniente, e daí que os estúpidos se tenham encarregado de triturá-lo aos poucos, obtendo um lucro fabuloso nessa operação. Olhamos ao nosso redor e toda a existência humana parece estar prometida a este projecto, e todos se mostram imensamente confiantes com o progresso da operação. Na verdade, esta completa falta de noção do ridículo é aquilo que garante que qualquer esforço de crítica seja visto como uma forma de pretensiosismo, uma atitude própria de quem está apostado em perturbar o curso da evolução histórica. No fundo, os estúpidos somos nós. E esta inversão extraordinária garante, pelo caminho, que já ninguém possa ser chamado à razão. O efeito de intimidação é de tal ordem que são cada vez mais escassos os pensamentos que respondem a esta conspiração através da recusa das suas orientações, até porque a linguagem mesma tornou-se imensamente pantanosa, os termos e os conceitos viram-se apropriados pela estupidez, pelos seus valores contagiosos, por essa inversão do sentido, de tal modo que quem questionar seja o que for obriga-se a um exame de tal modo implicante que a maioria se perde, distraindo-se com outra coisa. Qualquer letrado, ao introduzir a suspeita e afastar-se do idiolecto imbecilizante e inteiramente recamado na forma de frases feitas, transforma-se de imediato num ser incómodo, e é ele que atrai sobre si a rejeição dos demais. Hoje, cada escritor que viole esse circuito de noções desastradas vê-se transformado no artista da fome, recusando esse venenoso sustento, apresentando-se na figura do protagonista de um conto de Kafka que exibe como espectáculo o seu jejum prolongado, e que tem de fazer um esforço absurdo para que o público não escolha outro entretenimento. É o próprio destino horroroso que temos diante de nós aquilo que estranhamente nos hipnotiza e atrai. Não conseguimos recusá-lo, pois isso significaria travar uma luta apenas para adiar algo que parece estar inscrito nos sonhos da espécie. Há um desejo cada vez mais desinibido pelo desastre. Como nos diz Pascal Quignard, “matar-se é a paixão específica da espécie homo, fazendo jorrar o seu sangue negro, o seu vírus, a sua virtus, opondo-se às outras feras, nas quais a predação é simplesmente suscitada pela presa que as saciará, e também imediatamente saciada na medida em que a sua fome fora rigorosamente suscitada”. Arrancámo-nos à natureza, e esta dissolveu-se dentro de nós. Agora estamos cativos de uma irresolução permanente, de uma fome insaciável. “As centenas de milhões de ecrãs que cobrem o planeta transformaram-se no novo órgão fascinante, substituindo sacrifícios e ritos, multidões peregrinas, massas espezinhantes. É a sedentarização final. É o progrom tornado imóvel. Se o espectáculo não apazigua inteiramente a fruição horrorizada que este suscita, pelo menos crava no lugar o espectador que examina o sangue a escorrer. Faz daqueles que sidera presas com moradas, documentos de identificação, cartões bancários, vítimas numeradas, corpos sentados e petrificados susceptíveis a todas as extorsões e a todas as pilhagens. (…) O ódio, uma vez tornado imóvel a esse ponto, transforma-se em medo. O medo, esse companheiro único do desejo, confinado na sedentariedade e na propriedade fundiária, é reformulado como angústia. Essa angústia procura protecção junto do poder que ela mesma delegou ao pavor para conter o seu assombro, no qual consente como se não lhe pertencesse sob a forma de obediência, de liberdade mortificada, de imobilidade psíquica, de indolência social. Aquilo a que as democracias chamam política, desde o início deste século, olvidando o horror do século que precedeu este novo século, está a cometer o erro de criminalizar a contestação que as fundamenta e que deveria agitá-las até ao tumulto para as manter vivas.”
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