A crise climática passa pelas fontes de energia de que a humanidade depende
Fetch error
Hmmm there seems to be a problem fetching this series right now. Last successful fetch was on October 25, 2024 18:38 ()
What now? This series will be checked again in the next hour. If you believe it should be working, please verify the publisher's feed link below is valid and includes actual episode links. You can contact support to request the feed be immediately fetched.
Manage episode 440891712 series 2830860
Este episódio é uma continuação do Tecnocracia #78 (“Não há assunto mais urgente que a mudança climática”), da mesma maneira que os episódios do House se sucedem: você pode ouvi-los de forma independente, mas é provável que aproveite melhor este se já tiver ouvido o anterior. Dá para dar risada do doutor Gregory House sem saber nada da história principal, mas você entende melhor algumas cenas que não envolvam o deus ex-machina da resolução de casos médicos extraordinários.
O primeiro episódio sobre mudanças climáticas do Tecnocracia, publicado em fevereiro de 2024, definiu os aspectos básicos para entendermos um assunto urgente para todos os seres humanos — e não humanos, mas não exijamos a participação deles no debate por uma questão de linguagem. Foi uma pincelada geral, com a introdução de algumas definições bem básicas. Vamos recuperá-las rapidamente para ajudar o episódio de hoje.
- Há um consenso científico de que o planeta está esquentando pelo último século pela ação humana — especificamente, a queima de combustíveis fósseis e consequente liberação de gases carregados em carbono na atmosfera.
- Esse excesso de carbono se intromete em um processo que acontece há bilhões de anos: todo dia, a Terra recebe do Sol uma quantidade de energia semelhante à liberada em 10 bombas de Hiroshima. Essa energia é fundamental para qualquer tipo de vida no planeta. Muita dessa energia é absorvida, mas uma parte importante — calcula-se que 30% — volta ao espaço.
- Aí entra o problema: o carbono tem um efeito isolante que transforma a atmosfera em uma espécie de barreira para essa energia solar que deveria voltar aos cafundós do espaço sideral. Uma parte vai embora, enquanto a outra fica presa pela ação do carbono acumulado na atmosfera. É por isso que a ciência chama o fenômeno de “efeito estufa” — tal qual uma estufa que sua avó rica do interior tinha no quintal para criar orquídeas, gerânios e begônias, o calor entra fácil, mas tem dificuldades para sair, aquecendo o ambiente.
- De que gases estamos falando? Majoritariamente, três. Vocês já ouviram falar de todos. O maior em volume de emissões é o dióxido de carbono, o famoso CO2. Todo ano, estima-se que cerca de 40 bilhões toneladas de CO2 sejam jogadas na atmosfera. O segundo gás é o metano — o volume é menor (estimadas 10 bilhões de toneladas por ano), mas o metano prende 84 vezes mais energia que o CO2, ou seja, menor, mas mais perigoso. O terceiro também é um baixinho perigoso: são quase 3 bilhões de toneladas de óxido de nitrato todo ano.
- Para calcular quão mais quente a Terra fica pelo fenômeno, cientistas usam como base a temperatura média do planeta antes da humanidade começar a queimar combustíveis fósseis, ou seja, lá pela Revolução Industrial, século XIX. Pelo excesso de carbono na atmosfera, a temperatura média da Terra está prestes a bater o 1,5º C a mais que o nível pré-industrial. “Guilherme, 1,5º é de boa, é só colocar um casaquinho ou abrir o botão da camisa.” A temperatura do planeta não se calcula como a temperatura do dia a dia — na era dos dinossauros, o Círculo Polar Ártico era um oceano onde crocodilos nadavam com 4º C graus a mais. 2023 foi o ano mais quente dos últimos 100 mil anos da Terra, segundo o Copernicus Climate Change Service (C3S), ligado à União Europeia.
- O problema é que o 1,5º a mais na média representa um marco: assim que quebrar, a Terra deve entrar no que Lu chamaria de “point of no return”. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês), os efeitos nocivos do aquecimento deverão se tornar ainda mais severos. Que efeitos são esses? Fenômenos climáticos extremos que aconteciam raramente começam a se tornar não apenas mais comuns, mas também ainda mais severos. Enchentes ou secas devastadoras que antes aconteciam uma vez a cada 70 anos agora se repetem a cada 20, 10, 5 anos. Quer exemplos? Basta ler o noticiário.
- A única forma de resolver o problema é parar a emissão de carbono. Ponto. O planeta Terra terá que passar por uma descarbonização, um tremendo desafio visto que uma boa parte da economia global usa derivados de carbono como base.
- “Ah, Guilherme, mas tem cientista XY que diz que mudanças climáticas não são reais.” Torço que ele — e você, caso acredite — se encaminhe ao inferno por ajudar a transformar a nossa vida por aqui num inferno de tão quente. O problema é tão urgente que não vale perder o menor tempo com delírio.
Não tem como entender esse problema sem abordar uma questão fundamental não apenas sobre o clima, mas sobre a humanidade: energia. Emissões se concentram em dois grandes tipos: queima de combustíveis fósseis para obter energia e queima de grandes pedaços de terra. Chico Buarque feliz: o Brasil é líder no G20 na geração de energia renovável. Chico Buarque sufocado: o Brasil é o quarto país que mais emitiu gases de efeito estufa desde 1850, majoritariamente por promover, tolerar e não punir queimadas. Que timings para falar sobre o assunto.
No sétimo episódio da sexta temporada do Tecnocracia, o segundo sobre mudanças climáticas, nós vamos falar, então, de energia. Por que não tem como entender a crise climática onde estamos sem entender como a humanidade obtém a energia que usa diariamente. Se você parar para pensar bem, estamos no buraco exatamente por isso.
Apoie O Tecnocracia é um podcast que já foi sobre os efeitos da tecnologia nas nossas vidas e que, de alguma forma não esclarecida, virou um podcast sobre efeitos da modernidade nas nossas vidas. Por mim, tudo bem. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. Se quiser participar, manualdousuario.net/apoie.
Se tem um assunto que é tão importante quanto chato é energia. Aqui tem um debate intrincado sobre a definição de energia que eu vou deixar para as pessoas ouvintes que são físicas, químicas e filósofas. Na acepção a ser abordada, falaremos de energia como qualquer tipo de combustível que a humanidade usou para sobreviver e se desenvolver. Todo combustível libera energia quando passa por uma transformação. Quando falamos em energia aqui, não estamos necessariamente falando de energia elétrica, Por exemplo, toda queima de um combustível produz energia (pode ser elétrica, mas não é obrigatório) e resíduos. Os principais métodos em uso para gerar energia produzem resíduos que poluem o meio-ambiente e aumentam a concentração de carbono na atmosfera. Em miúdos, essa dinâmica explica por que chegamos onde chegamos — e por que estamos, com o perdão do meu francês, fodidos.
Tá bom, deixa eu desacelerar já que esse parágrafo pode ter soado um pouco etéreo demais. Vamos conectar energia com a nossa vida. A humanidade — ou seja, eu e você — usa energia para uma infinidade de finalidades. Todos os eletrônicos e eletrodomésticos da sua casa, as luzes e o ar-condicionado usam energia elétrica, produzida a partir de carvão, quedas d’água, petróleo, átomos e nêutrons se chocando, raios solares ou lufadas de vento. O aquecimento das casas no Norte do mundo usa gás natural. Há ainda uma multidão de pessoas que usa carvão para cozinhar. Quase todos os veículos usam ou algum combustível fóssil, como gasolina e diesel, ou uma bateria recarregada a partir da fonte usada para eletricidade na sua casa. A indústria que produz o seu sapato, sua camisa, a coleira do seu cachorro, sua mesa, o reboco da sua parede, aquela luz que você usa para se iluminar durante suas lives usa essas fontes.
Historicamente, como se desenvolveu a relação da humanidade com a energia? O site Our World In Data compilou os dados desde 1800. De 1800 a 1900, o maior combustível da humanidade era a biomassa — em termos leigos, a combustão de materiais sólidos, como madeira ou carvão vegetal. (Até fazer este roteiro, aliás, eu não sabia que o carvão vegetal vem da queima da madeira, enquanto o carvão tradicional se forma pela compressão de material orgânico morto em camadas sedimentares, num processo parecido com o petróleo.) Durante o século XIX, a queima de lenha e carvão vegetal abasteceu a humanidade, com o carvão ganhando terreno. Na virada do século XX, o carvão ganha a dianteira que só vai perder lá em 1965, para o petróleo.
É lá pela década de 1950 que o gráfico atinge um ponto de inflexão — o carvão não é substituído pelo petróleo. Pelo contrário: a produção global de carvão seguiu crescendo e em 2022 bateu recorde, com quase 8 milhões de toneladas, segundo dados da Carbon Majors analisados pela pesquisadora Nicola Rennie, da Lancaster University. Caso alguém queira replicar, ela escreveu um post explicando a análise em Python. A partir de 1950, a produção — e, consequentemente, o consumo — de energia no mundo disparou. Lá, eram gerados quase 29 mil Terawatt-hora de energia. Vinte anos depois, em 1970, mais que dobrou — já eram 66 mil Terawatt-hora. Em 1987, passou dos 100 mil Terawatt-hora. Em 2010, passou de 150 mil Terawatt-hora. Em 2023, a humanidade produziu 183 mil Terawatt-hora. Tudo indica que, em algum momento dos próximos 10 anos, bateremos os 200 mil.
Voltemos aos anos 1950. O ponto de inflexão da geração de energia na humanidade coincidiu com a geração de energia a partir de combustíveis fósseis: o que sustentou essa inflexão foram, principalmente, petróleo e gás natural, um derivado. Esse é um momento em que vários fios se encontram para dar um nó firme que segue insolúvel até hoje. Já existia tecnologia para extrair, processar e distribuir petróleo e seus derivados. Os investimentos governamentais e da iniciativa privada nas décadas anteriores na criação de empresas petrolíferas gigantescas começaram a se pagar — vamos lembrar que Getúlio Vargas fundou a Petrobras em 1953. Ao mesmo tempo, oferta não é nada sem a demanda. No pós-Segunda Guerra, começou um processo de industrialização, principalmente na América do Norte e, mais tardar, na Ásia, de construção civil e de transporte que se esbaldou no volume crescente de energia vinda de combustível fóssil. A base da economia global que a gente experimenta até hoje foi criada ali. A gente só está repetindo.
Em 2023, dos 183 mil Terawatt-hora gerados pela humanidade, 130 mil vieram de três combustíveis fósseis: carvão, petróleo e gás natural. Quer ver o buraco ficar mais fundo? Cada combustível fóssil tem um índice de emissão diferente. O mercado mede isso calculando quantos quilos de CO2 aquele combustível emite de resíduo para produzir uma quantidade X de energia — o padrão global é o milhão de BTUs. BTU é acrônimo de British thermal unit. Uma BTU representa pouco mais de 1 kJ (quilojoules) ou quase 0,3 Wh (watt hora). O gás natural é o mais “tranquilo” (entre várias aspas): são aproximadamente 53 quilos de CO2 por BTU. O petróleo vem atrás com cerca de 73 quilos de CO2 por BTU e o carvão lidera o ranking com cerca de 95 quilos de CO2 por BTU. Esses dados são de uma tabela da U.S. Energy Information Administration (EIA). Ali você pode ver as emissões de uma série de combustíveis. O combustível fóssil que mais emite CO2, o principal gás responsável pelas mudanças climáticas, está no seu ápice de extração e exploração. Nunca a humanidade tirou do chão e queimou tanto carvão como agora. Péssima notícia. E isso que a gente nem entrou no fato de que alguns tipos de carvão são ainda mais poluentes — o coke, usado principalmente para aplicações metalúrgicas, emite 113 quilos de CO2. A notícia é péssima.
Vamos parar um pouco para um papo entre brasileiros: eu entendo 100% se você estiver confuso/a. No Brasil, quando se fala em energia, quase sempre aparecem as hidrelétricas. O uso de carvão existe, mas é muito menor que em outros países. Há muitas décadas, a matriz energética (ou seja, todas as fontes de energia de um país) do Brasil é composta majoritariamente por energia hidrelétrica. Você certamente sabe como funciona uma hidrelétrica, já que todo mundo estudou isso na infância ou visitou uma das usinas: você represa um rio e cria um corpo de água enorme que está contido por uma barragem. A única forma da água passar por essa barragem é por canos em um declive que levam a uma turbina — volumes monstruosos da água descem com violência para girar uma turbina, produzindo energia elétrica. A água sai da barragem e volta ao leito do rio e segue em direção ao mar.
Segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), braço do Ministério de Minas e Energia (MME) responsável por coletar dados que embasam o planejamento do setor energético, cerca de 60% da matriz energética do Brasil vem de hidrelétricas. Quando você ouve que o Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, não é groselha de político: é verdade. O Brasil tem bacias hidrográficas suficientes para construir usinas enormes capazes de produzir mais da metade da energia que consumimos. Na base do rio Paraná, construíram Itaipú. Do rio Xingu, Belo Monte. Do rio Tocantins, Tucuruí. No rio Jirau, tem Jirau e Santo Antônio. O Velho Chico tem nove. No total, o Brasil tem quase 150 hidrelétricas. Existe uma boa chance de você ter uma perto da sua casa — eu te aconselho a ir visitar um dia. É um passeio incrível.
O New York Times publicou em agosto uma reportagem interativa muito interessante mostrando como cada um dos seus estados produz energia, tanto para usar como para enviar para outros estados. Fui procurar algo do tipo para o Brasil e não achei. Uma das questões das mudanças climáticas é a gente entender questões básicas do problema, como emissões vindas de energia. Como a EPE não oferece algo do tipo, eu resolvi analisar os dados, publicados em um formato super confuso, e criar um app interativo onde você pode ver a evolução da produção de energia de cada um dos estados brasileiros. Se quiser acessar, está em https://energiabr.streamlit.app. O que o app mostra é que, mesmo no Brasil, varia muito a forma como cada estado obtém sua energia. Estados com usinas hidrelétricas enormes, como Paraná, Pará, Alagoas, Amapá e Sergipe, consomem a energia produzida ali, mas não ache que ter um rio é suficiente para a hidrelétrica ser sua principal fonte: quase 80% da energia gerada no Amazonas vem de gás natural e termoelétrica, alimentada principalmente por óleo diesel, muito poluidor.
No geral, o Brasil é exemplo global de geração de energia com baixa emissão de resíduos — pela última década, o país vem conseguindo atender ao aumento na demanda com o aumento na geração de renováveis. Segundo a consultoria em energia Ember, o Brasil lidera o G20 no assunto. Antes que o ufanismo lhe tome, vale lembrar dois pontos:
- O Brasil é o quarto país que mais emitiu gases de efeito estufa desde 1850, majoritariamente pelo uso de terra, ou seja, queimada e desmatamento, segundo análise do CarbonBrief publicada em 2021;
- As hidrelétricas podem não emitir carbono, mas estão longe de não terem impacto na natureza. Sob qualquer prisma que você analisar, Belo Monte é um desastre ambiental, com aumento na grilagem, desmatamento e deposição de indígenas. Dois links fundamentais para você entender o tamanho do problema: reportagem de 2019 da Amazônia Real, o melhor site jornalístico cobrindo a região, e artigo no Nexo do pesquisador Marcel Ribeiro Padinha, que estudou no doutorado a destruição socioambiental deixada por Belo Monte.
A revolução dos renováveis vem a tempo?
Legal, o Brasil é exemplo global de geração de energia com baixa emissão de carbono, mas e o resto do mundo? Está claro que a demanda por energia não vai baixar. O caminho aqui é substituir fontes de energia que emitem carbono por outras que emitam ou bem menos ou nenhum. É o que o mercado chama de renováveis — uma energia obtida a partir de fontes naturais capaz de se renovar mais rápido do que o consumo. Pelos próximos bilhões de anos, teremos vento e luz solar por aqui. Como vantagem cumulativa, renováveis não emitem CO2.
A principal história que qualquer gráfico sobre geração de energia conta na última década é como as renováveis deixaram de ser uma linha fina para ocupar mais espaço.
Até agora o episódio só teve notícia ruim. Agora a gente começa a entrar nas boas. A primeira é que a demanda global por petróleo está desacelerando. Abre aspas para estudo da International Energy Agency (IEA) publicado em setembro de 2024:
O crescimento da demanda global (de petróleo) está diminuindo drasticamente em relação às taxas observadas nos últimos anos […] A demanda mundial por petróleo está a caminho de aumentar em 900.000 barris por dia, ou 0,9%, em 2024 e 950.000 em 2025, abaixo dos 2,1 milhões, ou 2,1%, em 2023.
Lembre-se: estamos falando em aumento da produção, não em volume total. Se mantiver o ritmo, a produção global de petróleo deve parar de crescer nos próximos anos. Para parar de produzir petróleo ainda tem um caminho loooooooooongo. Enquanto a geração de combustíveis fósseis cresce a ritmo de lesma, a de renováveis cresce a passos largos. Renováveis já são 30% da geração de energia do mundo, segundo o relatório Electricity Transition in 2023, publicado em maio de 2024 pela consultoria em energia Ember. Hidro continua mais ou menos a mesma coisa. O impulso vem de solar e eólico: desde 2000, “a geração de energia solar aumentou 23% em média por ano; a de vento, 10%. A geração de combustível fóssil aumentou 0,8%”. Matemática básica: crescer de 1 para 2 é bem mais fácil que de 100 para 200. Ainda assim, há uma substituição em curso.
Não existe melhor exemplo para esse crescimento das renováveis que as energias solar e eólica. Na solar, estamos passando por uma revolução — e estou tomando cuidado para não soar hiperbólico. Abre aspas para reportagem do New York Times de agosto de 2024:
Em 2023, o mundo instalou 444 gigawatts de nova capacidade solar fotovoltaica, de acordo com a BloombergNEF. Embora esse número possa ser difícil para processar, ele representa um passo à frente impressionante: um aumento de quase 80 por cento ano a ano e mais do que foi instalado cumulativamente entre 2017 e 1954, ano em que a célula fotovoltaica foi inventada. Embora a energia solar ainda forneça pouco menos de 6 por cento da eletricidade global, sua participação quase quadruplicou desde 2018, uma curva exponencial que deve continuar por algum tempo.
O crescimento exponencial quer dizer que, até 2030, é provável que a energia solar seja a maior fonte de eletricidade do planeta. Pense nisso: não na próxima Copa, na outra. Seis anos.
De volta ao New York Times:
Ainda mais notável do que a escala é o custo. Por uma medida, o custo da energia solar é menos de um milésimo do que era quando os hippies e ambientalistas fizeram questão de instalar painéis em seus telhados na década de 1960. Uma década atrás, era considerado uma meta mirabolante reduzir o preço de um módulo solar para um dólar por watt; agora eles estão sendo fabricados por um décimo disso. O preço caiu quase pela metade só em 2023. Um resultado é que, por algumas formas de tabulação, a energia solar já é mais barata do que todas as outras novas fontes de eletricidade para algo como 95 por cento do mundo. Outro resultado é que o preço de um painel solar está se tornando uma fração cada vez menor do custo real de geração e uso de eletricidade a partir dele — com uma parcela muito maior vindo do preço de instalação e interconexão, expansão da rede e o que quer que você esteja fazendo para suplementar essa energia solar à noite e no inverno.
A energia eólica também está crescendo num ritmo muito forte. Não tanto quanto a solar, mas o suficiente para cobrir o aumento da demanda. Energia solar demorou 8 anos para saltar de 100 TWh para 1.000 TWh, enquanto a eólica fez o mesmo em 12 anos, mesmo número da energia nuclear. Petróleo demorou 28 anos e o carvão, 32 anos. Voltemos aos dados do Our World In Data: em 2023, a humanidade produziu 50% mais energia eólica que solar. Tudo indica que esse “gap” (oi, Lu) vai diminuir nos próximos anos, já que a curva de geração solar é praticamente vertical. O fato de a eólica estar estabelecida há mais tempo significa que algumas regiões com turbinas antigas já vivem praticamente desta energia. Volte ao app que criei e escolha o Rio Grande do Norte. Em 2023, praticamente 90% da energia criada no estado era eólica. Em 2011, era só 11%. O que eólica substituiu? Gás natural e termoelétrica. Quase 60% da energia da Dinamarca já é eólica. Compare os dez países com maior participação de eólica na matriz energética, segundo dados da Ember — nove estão na Europa. A exceção é o Uruguai, com um terço da matriz.
Boa notícia: solar e eólica são as fontes de energia com crescimento mais rápido da história e estão passando por um crescimento exponencial. Nem tão boa notícia: só elas não vão dar conta do recado. É por isso que um crescente grupo no setor vem defendendo recuperar um tipo de energia que todo mundo conhece: a nuclear. A forma tradicional de geração de energia nuclear é a partir de um processo conhecido como “fissão nuclear”: um átomo pesado (como o de urânio) é bombardeado por um nêutron, fazendo com que ele se divida. O átomo original quebra em partes menores e libera mais nêutrons, que reiniciam o processo, se chocando com outros núcleos atômicos e por aí vai. Essa reação em cadeia libera uma enorme quantidade de energia sob a forma de calor. Esse calor esquenta a água dentro do reator, que se transforma em vapor, gira uma turbina e produz eletricidade. É um processo que, quando rola bem, produz uma quantidade enorme de energia sem emissões. O problema é quando não rola bem: com vazamentos ou explosões, as emissões de usinas nucleares clássicas fazem o carbono parecer uma tigela de sucrilhos. Se você ainda não viu, eu te aconselho fortemente a ver a minissérie Chernobyl, da HBO. Claro, tem muito de romantização, mas a principal parte, os efeitos para os habitantes da cidade, hoje na região da Ucrânia, e a humanidade estão lá. Estima-se que demorará entre 3 mil e 20 mil anos até que a região se torne habitável novamente.
Eventuais problemas com energia nuclear perduram em outra escala de tempo, mas é bom ter em mente que, estatisticamente, existe um consenso entre quem entende do assunto de que energia nuclear é segura. De novo, dados da Our World in Data: se considerarmos a quantidade de mortes por acidentes e poluição, nuclear só não é mais seguro que energia solar: são 0,03 mortes por TWh de energia produzida. Lembrando que 10% da eletricidade do mundo é nuclear. O petróleo, responsável por 3% da eletricidade do mundo, mata mais de 18 por TWh produzido. Energia nuclear é mais ou menos como andar de avião: estatisticamente, é mais seguro que andar de elevador, mas os raros acidentes (Chernobyl e Fukushima, principalmente) ficam tão marcados1 que turvam completamente a percepção do público. Vamos lembrar que esse medo tá marcado na cultura pop: o Homer Simpson é um inspetor de segurança nuclear na usina de Springfield. Se você prefere vídeo, o canal AsapSCIENCE fez um sobre segurança nuclear.
Na última década, um grupo de físicos nucleares, investidores e pesquisadores de energia se muniu das estatísticas, da urgência das mudanças climáticas e de novos projetos de reatores para argumentar que os principais problemas foram resolvidos. O New York Times publicou um episódio do The Daily exatamente sobre isso em julho de 2024. Se inglês não for um problema, eu te aconselho a ouvir. O investimento em nuclear não é algo que vai acontecer – ele já está acontecendo. Abre aspas para o New York Times:
Em junho, no estado do Wyoming, trabalhadores começaram a construção de um novo tipo de reator nuclear que deve ser menor e mais barato do que os enormes reatores antigos e projetado para produzir eletricidade sem o dióxido de carbono que está aquecendo rapidamente o planeta. O reator que está sendo construído pela startup TerraPower não será concluído antes de 2030 e enfrenta obstáculos assustadores. A Comissão Reguladora Nuclear ainda não aprovou o projeto, e a empresa terá que superar os inevitáveis atrasos e estouros de custos que condenaram historicamente inúmeros projetos nucleares.
O principal investidor da TerraPower é Bill Gates e não existe segredo nenhum: ele fala abertamente sobre isso na minissérie para o Netflix e no livro sobre mudanças climáticas “Como evitar um desastre climático: As soluções que temos e as inovações necessárias”, publicado em 2021. De novo: o livro é um excelente ponto de partida para quem quer se inteirar do assunto. “Guilherme, bilionários nem deveriam existir”. É verdade, mas antes um bilionário gastando bilhões do próprio bolso para ajudar a resolver o problema mais urgente da humanidade do que outro gastando bilhões para ajudar neonazi. A PhD em física e escritora Sabine Hossenfelder fez um vídeo curto explicando os detalhes técnicos do novo reator em comparação aos antigos. Aliás, o canal dela é muito bom. Vale a pena seguir. Existem muitos “se” nessa equação: este modelo com reatores menores refrigerados a sódio líquido ainda não foi testado na prática durante anos. Ele vai produzir energia suficiente a um preço bom o suficiente com segurança? Ninguém sabe ainda. A primeira usina da TerraPower será inaugurada só em 2030. A gente já falou desse ano no episódio: é quando espera-se que a solar se torne a principal energia do planeta. Se der certo, esse novo modelo de nuclear é a médio prazo.
Vamos começar a amarrar para chegar ao fim.
Não existe um representante melhor do cenário de energia em que estamos agora do que a China. Por um lado, a China é a principal responsável pela revolução de energia solar que o planeta está passando. A maioria dos painéis solares vem de lá e essa economia de escala fez com que o valor das placas caísse 90% na última década. Um dos principais consumidores é o mercado interno: a China tem instalado tantas placas solares e turbinas eólicas que o potencial de geração de usinas de renováveis em construção no país é maior do que todos os outros países do mundo somados, segundo dados do Global Energy Monitor. Curiosidade: sabe quem é o segundo colocado? Brasil. Abre aspas para o relatório: “Entre março de 2023 e março de 2024, a China instalou mais energia solar do que nos três anos anteriores combinados e mais do que o resto do mundo combinado em 2023. A capacidade solar ultrapassou a eólica pela primeira vez em 2022, e a lacuna aumentou significativamente, graças à expansão maciça da energia solar distribuída.” Corta para o Sid de A era do gelo dizendo “a gente vai viver”.
Porém, ah, porém. Abre aspas para o New York Times:
Mas a China também queima mais carvão do que o resto do mundo combinado e acelerou a mineração e a construção de usinas de energia a carvão, aumentando as emissões de gases de efeito estufa relacionados à energia do país em quase 6% em 2021, o ritmo mais rápido em uma década. E o vício da China em carvão provavelmente durará anos, até mesmo décadas.
Graças principalmente ao uso de carvão, a China emite quase um terço de todos os gases de efeito estufa — mais que os EUA, Europa e Japão combinados. O país foi responsável por 95% das novas usinas de carvão construídas em 2023, segundo relatório anual da Global Energy Monitor (GEM). Corta para o Sid de A era do gelo dizendo “a gente vai morrer”.
Papo reto: agora deveria ser o momento em que a humanidade corta emissões. Você já vê alguns países ou regiões assim: a partir de 2024, a Europa gerou mais eletricidade a partir do vento e do sol que de combustíveis fósseis. Em março de 2024, o Texas gerou mais energia de solar e eólica do que de carvão pela primeira vez na sua história — vale destacar que o Texas, extremamente conservador em política, se tornou o filho dourado dos renováveis nos EUA, à frente até da Califórnia. Excelente sinal. Mas do que adianta se a China segue pisando no acelerador com carvão? Pouco. O clima do planeta é um sistema complexo interconectado — a emissão em Franco da Rocha não fica restrita a Franco da Rocha. Em 2023, o planeta “aposentou” usinas de carvão que somavam um total de 21 GW ao mesmo tempo em que inaugurou usinas com capacidade total de 69 GW. Inaugurou três vezes mais do que fechou. Desde 2001, não houve um ano em que o balanço na geração de energia de carvão não tenha sido positivo. Não pode piorar? Abre aspas para a última reportagem do New York Times do episódio, publicada em novembro de 2023:
Carvão, o mais sujo dos combustíveis fósseis, é muito mais prejudicial à saúde humana do que se pensava anteriormente, de acordo com um novo relatório, que descobriu que as emissões de carvão estão associadas ao dobro do risco de mortalidade em comparação com partículas finas transportadas pelo ar de outras fontes.
Eu não consigo terminar esse episódio que não rachado ao meio entre um pessimismo desanimador e um leve otimismo. Pessimismo por ser realista — com o perdão do meu francês, a gente tá muito fodido. Otimismo já que o crescimento da geração de renováveis enche qualquer um de esperança. O problema é que pode crescer três vezes mais rápido que não vai resolver o fato de que as emissões de gases do efeito estufa não apenas continuam, mas estão crescendo. A emissão de hoje é o desastre contratado para daqui a alguns anos. É um temor comum de quem estuda a questão há décadas não comunicar com muito pessimismo para não passar uma imagem de que, se já tá tudo tão fodido, então truco. Que não tem como melhorar. Que se vamos mergulhar na distopia climática, então não precisa mudar nada. Só que dá para agir se a gente entender que existem camadas de quão fodidos nós estamos. Falar em aumento de 1,5º C, como previsto nos Acordos de Paris, chega a ser uma piada de mau gosto a esta altura. Está claro que é questão de tempo — nós vamos passar do 1,5º C a mais que a temperatura média pré-industrial, com todas as consequências nefastas da marca. O que dá para se preparar é para o próximo marco e evitar consequências ainda piores.
E o que você consegue fazer? O próximo episódio vai ser só sobre isso.
Foto do topo: Andreas Gücklhorn/Unsplash.
- Com uma certa razão. ↩
34 एपिसोडस